Brincando de ser autor e poeta.

ESBOÇO LIVRO: BENDITAS VOZES 

Pesquisador e autor: NIL CÉSAR

           
Hoje à noite, oito de março de dois mil e três, na Rua Cachoeira Dourada, número quarenta e quatro, no bairro Santa Efigênia, um grupo de teatro do Morro do Papagaio - uma das maiores favelas da cidade de Belo Horizonte – fará a estréia do seu novo espetáculo: “Bendita a Voz entre as mulheres”. Esta peça foi construída a partir de depoimentos e de histórias de vida de vinte mulheres moradoras desta comunidade. O local da apresentação é o galpão de uma antiga fábrica.
O “Grupo de Teatro Andante” emprestou sua sede para ensaios e apresentações possibilitando, assim, a apresentação deste espetáculo para um público diverso.
As pessoas que estão são artistas da cidade, amigos e parceiros do grupo e as mulheres que emprestaram suas vidas para a construção deste trabalho artístico. Para elas, segurar a ansiedade que a expectativa proporciona é um exercício difícil: saber como suas vidas foram abordadas no espetáculo era uma dúvida que pairava no ar.
– Ai gente! O que será que este povo do teatro fizéro com as nossa história hein? – comentou, ansiosa, dona Florença ocupando o terceiro lugar da fila.
Era a primeira vez que Florença e grande parte delas assistiriam a um espetáculo teatral.
– Se o pessoal do Grupo de Teatro foi na nossa casa pra entrevistar a gente, falaram que ia montá uma peça, você acha que eles fizeram o quê, hein? É lógico que é teatro, né Florença? Só pode ser teatro! – respondeu impaciente dona Arlinda.
– Num tô falando isto, Arlinda. Tô é curiosa para ver que parte da minha história eles aproveitô pra fazê a peça. Tô até nervosa! – Justificou Florença ao perceber a reação brusca da colega.
 O que ninguém daquela fila sabia, era que Arlinda estava com receio de terem construído uma cena fiel ao que ela contou. Como para falar da sua vida, Arlinda dependia de comentar sobre a vida das outras pessoas, ela tinha medo de que, ao verem a cena na íntegra fosse considerada fofoqueira pelos vizinhos, amigos e inimigos. Na realidade, a presença de Arlinda naquela estréia era para se certificar de que não sofreria represália das pessoas que foram citadas por ela durante a entrevista dada para o Grupo de Teatro. Este receio só surgiu muito tempo depois de ter cedido sua história. Foi quando encontrou, na rua, com uma das atrizes “Nossa! A entrevista que a senhora nos deu está ajudando muito para a construção de uma cena”, “Vocês não colocaram meu nome, né? Muito menos os nomes das pessoa que falei, pelamor-de-deus!”, “Acalme-se dona Arlinda, claro que não fizemos isto. Estamos adaptando todas as histórias e criando outros nomes para não colocar ninguém em saia justa. Não se preocupe!”. Mesmo tendo sido tranquilizada pela atriz, dona Arlinda não cessava de perguntar aos integrantes a respeito deste assunto. Era só encontrar com um deles nas ruas, nos becos, na comunidade que a mesma pergunta não se calava.
– Eu nunca imaginei que o meu sofrimento ia interessar prá alguém. Foi só isto que tive na vida, desde que nasci: Sofrimento, sofrimento e mais sofrimento! – suspirou, emocionada, dona Selma. Interrompendo as preocupações de dona Arlinda.
– Cê viu como que os olho deles brilhava com cada coisa que a gente contava? Eles gostáro muito da nossa vida, né Zínia? – Perguntou dona Orquídea à irmã que dividia com ela o barraco.
– Também, ocê falô tanta asneira que eu até rupiava – revidou Zínia –. Cê tem que criar juízo Orquídea, cê já tá véia menina! As moça num fôro lá em casa prá ouvir ocê ficá falano palavrão não. E comentou com as colegas da fila: “Cês precisava vê como que ela falô bobage. Eles tava filmano e gravano tudo, minina.”Lembrar de como a irmã se portou diante das moças e dos rapazes integrantes do Grupo de teatro ainda lhe deixava ruborizada. O que para ela, dona Zínia, era vergonhoso, para os jovens artistas foi muito proveitoso e construtivo. “A entrevista de vocês, foi uma das mais                      .

divertidas.”, “Garantimos que não tem nenhuma cena no nosso espetáculo que vai deixar a senhora com vergonha, dona Zínia. Pode confiar na gente!.”, comentou um dos jovens tentando convencê-la em ir à estréia. “Ocês me garante isto?”.
– Ih, boba, eles tão tudo acostumado com as coisa do mundo. Esqueceu que eles também mora no morro? O sangue das vêia deles é igual, ou mais favelado que o nosso! - acrescentou dona Palma indo a favor de dona Orquídea -  Eu também falei de um tudo pra eles, sabia? Só que depois que a gente terminou a nossa conversa, lá na minha casa, eu fiquei lembrando de um tandi coisa que eu tinha que tê falado, mas esqueci. Aí, toda vez que vejo um deles na rua eu grito: “Ô pessoal! Lembrei de um tandi de coisa pra contá. Traz o gravador e a filmadora...” – risos e gargalhadas ecoaram pelo espaço após o comentário feito por Margarida.


É perceptível que na fila o rumo daquela prosa caminharia por outros atalhos e trilhas. Enquanto isto, nos bastidores do palco, a equipe cuidava dos últimos preparativos para que não acontecesse nada de errado na estréia.
Como todo espetáculo, o nervosismo, a ansiedade e a agitação no coração ecoavam no silêncio interno de cada um.
Depois de terem alongado o corpo, preparado a voz e conferido mais de mil vezes os adereços que seriam usados durante a encenação, a concentração individual era algo imprescindível para que não acontecesse nenhum tropeço, nenhum imprevisto durante a apresentação. Os atores receberam as últimas recomendações dos diretores: “O silêncio é imprescindível para o sucesso desta estréia e para o sucesso de cada espetáculo que apresentarem.” – recomendava ao atores, Júlio Maciel, um dos diretores da peça. “Repassem tudo dentro da cabeça de vocês. Imaginem que vocês estão vendo um filme” – completou Ana Domitila que dividia com Júlio a direção daquela montagem. “Quanto maior for a agitação de vocês, maior a possibilidade de errarem. Agora eu quero que cada um de vocês procurem um ‘cantinho só seu’ para que haja concentração individual. O que tinha que ser coletivo já foi feito. Agora é o silêncio total da mente, do corpo e da voz.”. Sempre que Júlio Maciel falava, como neste momento, os atores e atrizes tinham a sensação de estar ouvindo um Buda proclamando sábias palavras sobre a vida e a arte. Sendo assim, os atores tentaram seguir os conselhos dos diretores. Mas, o cérebro, os nervos e o coração do elenco não registraram a recomendação dada, nenhum dos órgãos conseguia atingir, internamente, um estado de calmaria, um estado taciturno.
As risadas daquelas mulheres percorreram por todo espaço, por todo cenário, por todos os ossos dos atores e atrizes. A tranquilidade mantida por aquelas mulheres na fila acabou fazendo com que o nervosismo que tomava conta deles começasse a diminuir. “Elas estão tão à vontade lá fora, tenho que me tranquilizar também.” Determinou para si alguém do elenco.
A presença das vinte mulheres na estréia fez cada ator e atriz perceberem que valeu a pena cada dificuldade que o processo trouxe. A expectativa que aquele público depositou para ver a peça foi decorrente de já terem realizado uma pré estréia na comunidade.
O Morro do Papagaio, na maioria das vezes ocupou os meios de comunicação como um lugar violento onde aconteciam grandes atrocidades e desgraças. Crimes absurdos ocuparam as páginas policiais. O domínio do tráfico já foi motivo de cobertura televisiva durante uma semana inteira. As balas perdidas que atingiram inocentes nunca tiveram esta mesma ênfase na mídia. A agressão policial sempre foi maquiada por falas como a de um tenente que afirmou certa vez “As pessoas que nós prendemos, são todas suspeitas de crimes”. “Mas tinha necessidade de espancá-los? Ainda mais no meio da rua, na frente dos filhos?” – revidou uma atuante em direitos humanos dentro da comunidade – “Bandido merece ser punido” – revidou o policial. “O P.C. Farias é um criminoso, ele foi espancado? Os vizinhos dele sofreram retaliação só porque moram perto dele, assim como a gente sofre? Não!”. A jornalista que fez a entrevista tomou o cuidado de editar as falas que questionavam a atuação da polícia.
Quebrar este estigma de que a favela só tem criminosos era o sonho daqueles jovens artistas.


Dois dias antes daquela estréia que mobilizou aquela fila, no dia seis de março de dois mil e três, aconteceu uma apresentação no Morro do Papagaio. O local: Centro Social Padre Danilo. O endereço: Beco Santa Inês número trinta.
Neste dia, onze veículos de comunicação disputaram o melhor lugar no centro social para melhor fazer a cobertura daquela primeira apresentação, só TV havia seis.
Além da mídia, pessoas do morro, artistas de Belo Horizonte, companheiros e conhecidos daquele grupo transitaram pelo morro para ver a peça. Os becos e as ruas próximos do centro social era, naquele período, o foco da violência armada. Dentro do Morro do Papagaio a violência acontecia por focos: às vezes dava para usar determinada rua como viela de transito, no mês seguinte esta mesma rua já estava perigosa de ser transitada e assim sucessivamente.
Um policiamento foi solicitado para assegurar que nada de ruim acontecesse às pessoas que fossem ao evento. Não só porque a policia marcou presença na atividade, mas, pelo fato dele ser uma coisa nova e boa para o morro, os jovens envolvidos nas gangues decidiram, por bem, ficarem distantes.
- “Cês tão trazeno coisa boa pro nosso morro. Se nóis num pode ajudá, atrapalhá tamém num vamo não!” – declararam à um integrante do Grupo. Nem apareceram.
E no centro social todos ocuparam seus lugares. O público, os repórteres, os radialistas, os jornalistas e os policiais. A polícia, que deveria “cuidar” da segurança dos convidados, também se acomodou na platéia e se entregou à fantasia do espetáculo. “Não sabia que aqui no morro tinha teatro” pensou um deles ao aplaudir o findar do espetáculo. Não sabia, também, ele que dali há duas semanas, quando o espetáculo retornasse a este local para fazer uma nova temporada no morro que, um dos indivíduos que ele tanto gostaria de algemar e prender, ocupará, na platéia, a mesma cadeira que está assentando. Será também para o indivíduo, no momento do aplauso, uma surpresa descobrir o grupo de teatro da comunidade com uma peça tão emocionante e convincente. A única diferença entre eles é que o jovem rapaz em questão levará seus amigos do dia a dia, sua esposa e seus filhos para se divertirem. O policial até tentou mobilizar os seus, mas os amigos não estavam escalados para a comunidade e sua esposa ficou com medo de entrar no morro, ainda mais mulher de policial. “Na hora que tem tiro no teatro eu até pus a mão na arma!” – comentará um dos rapazes do tráfico. “Não precisa assustar. Teatro parece mas não é verdade.” – falará o chefe deles enxugando a lágrima no rosto da esposa emocionada. Nem um nem outro esconderão a empolgação quase infantil de ver teatro pela primeira vez. “Vocês deviam estar na TV” – comentou o policial logo na única vez que assistiu ao espetáculo –, assim como comentará o indivíduo procurado por ele, na terceira vez que assistirá a peça.
Apenas duas das vinte entrevistadas assistiram àquela apresentação realizada na comunidade. Algumas das outras mulheres também queriam ter ido à pré-estréia, não exatamente porque veriam o espetáculo em primeira mão, mas porque dariam entrevistas para jornalistas, assim como aconteceu com dona Valência. A imprensa quis acompanhar a reação das mulheres vendo parte de suas vidas sendo encenadas no palco.
Dona Valência foi a escolhida para dar seu depoimento para a TV: filmaram os filhos, filmaram-na vendo TV, fazendo comida, varrendo casa, subindo o morro e assistindo o espetáculo. Agora todos sabem que a cena da peça onde retratava parte da vida dela, era o momento em que agrediu o marido para se defender à violência que sofreria dele.


– Nossa. A fila tá é grande hein. – comentou dona Selma ao ver quantas pessoas estavam esperando para entrar no teatro.
– Lembrei das filas de lata que a gente fazia de madrugada pra pegá água – rememorou dona Glória..
– Nem fala! Quantas madrugada eu já acordei pra dexá minha lata segurando o meu lugá na fila, meu Deus. – divagou Zínia
– Muita coisa mudô, né? – complementou Acácia.
– Desculpa me intrometer, gente. Mas, como é esta história das latas? – a nostalgia das mulheres foi interrompida por um senhor que estava logo atrás de onde acontecia os diálogos.
– Ih, minino. Nem te conto! Num tinha água encanada nos barraco, né. Só tinha como tê água em casa se buscasse nas bica espalhada no morro. Mas a água só chegava às cinco da madrugada e ia embora às sete da manhã. Nos acordava de madrugada pra colocá a lata na fila da bica. A lata sigurava o lugá da gente inquanto a gente ia pra casa durmi mais um poquim. Assim que dava a hora da água chegá, a gente levantava e ia pro lugá onde tava a lata.
– Que organização, hein? – espantou o senhor.
– Nada, bobo! Dava tanta confusão – enfatizou Valência –! Eu por exemplo já briguei tanto por causa d'água.
– Eu que o diga, né Valência? Cê lembra do dia que ocê me deu um tanto de latada na cabeça? – a fila inteira riu – E ocê era minina ainda!
– Ai que vergonha, a senhora não esquece disso, né? Meu pai me deu uma surra com vara de amora depois daquilo.
– Que menina encrenqueira era a senhora hein? – brincou o senhor – Conta essa história pra gente.
– Num sô increnquêra não, bobo. Só num gosto de levá disaforo pra casa. – respondeu Valência.
– Eu te ví na televisão, Valência. Passô sua entrevista. Ocê falô bem hein? – Comentou dona Orquídea.
Com a inveja ocultamente bem guardada, Acácia informa ao curioso senhor da fila. Suas palavras soam como provocação:
– Ela fala que num é encrenquêra. Passô no jornal que a cena do teatro que fala da
ida dela, é a hora que ela bateu no marido.
   – Bateu naquela senhora quando era pequena. Bateu no marido. A senhora é difícil
hein... – brincou ele – conta pra gente como foi que a senhora brigou com o seu amor. -Riram.
– Como é que o senhor chama? – Perguntou Valência
– Nestor Sant’Anna, prazer.
– Vai lá em casa um dia que eu conto. Só pro senhor. – provocou Valência.
–Ah, não Valência. Fala agora! Grande parte das pessoas da fila insistiu que
Valência narrasse aquele fato tão instigante. Desde a noite anterior, que sua entrevista foi ao ar, Valência não parou mais de contar este caso. “Um tanto de gente igual esse... Num posso perdê a portunidade de contá minha história mais uma vez” – pensou.


– Vem pro buteco Valência! O pessoal tá te chamando muié! – Gritou Biri para a esposa que estava fazendo comida.
– Calma né, bem! Depois cê reclama que eu não fiz a comida direito. Num gosto quando nóis briga à toa. – respondeu Valência ao marido que insistia para que a esposa abandonasse a empreitada culinária.
– Mas é natal, muié! Num pricisa cuzinhá nada não. Tá cheio de cumida lá na festa do Buteco do Pino. O pessoal fez torresmo, maionese, vinagrete e tá até assano carne. A nossa parte da conta eu até já paguei. Vão lá, o povo tá  chamano.
 O teor etílico do hálito de Biri impregnou o ar.
– Vem cá preto. Vem cá pér di mim! – chamou Valência com o intuito de conferir o bafo. Inocentemente Biri pensou que a mulher queria um beijo e foi até ela com um “biquinho” já formado nos lábios.
– Cê bebeu de novo, Biri?
– Ê muié chata sô. Já ti falei que eu vô pará de bebê depois que passá as festa de fim de ano, num falei?
– Toda vez é isso. “Depois do ano novo num ponho uma gota de bebida na boca. Eu ti garanto muié!” – repetiu Valência imitando o marido – Eu num acredito nocê mais não, homi.
– Se dependesse docê eu num bebia nem água.
– Mas a água que ocê gosta, nem passarinho bebe. É água que gambá gosta. É água prá boi durmí!


– Nossa! O que o seu marido achou de ver ele passando na televisão apanhando da mulher? – brincou Nestor – Ele deve estar com tanta vergonha que nem veio ver a peça, né?
– O Biri já tá lá do outro lado, conversano com Deus. Ô com o diabo, num sei. Mas se ele tivesse vivo, ia tá divertino junto cá gente. Ele era muito engraçado. A única coisa que estragava naquele homi era a bebida!
– Que homi que ia gostá de mostrá que apanhô de muié, Valência? Homi num aceita isso não. – Afirmou Margarida.
Valência não lhe deu ouvidos, pois só o fato de comentarem sobre a briga que inspirou uma cena na peça, uma erupção de frases, palavras e assuntos continuou a ser metralhada para as pessoas daquela fila.


– Ai Preto, eu não bati nocê não, amor. – Valência tentou convencer o marido  a respeito da sua inocência. Biri até acreditaria nela. Mas, a cachaça acompanhada do ciúmes, aprisionaram a razão no fundo do órgão mais escondido que Biri tinha.
– Bateu sim mulher! – gritou Biri, enfático e etílico.


Biri era alcoólatra desde o início da adolescência. Bebia para esquecer a fome que lhe avolumava o estômago. O histórico de alcoolismo e de fome na sua família era um fator genético. Não entendia porque toda a família havia herdado tal legado. Sempre assimilou que herança vinha acompanhada de bens valiosos, só que a sua família lhe deixou como patrimônio a vida de pobre e o alcoolismo. “Sê pobre as pessoa até aceita...”, pensava ele, “...todo rico precisa de um jardineiro, de um marceneiro, de um vigia, de um pedreiro pra trabalhá pra eles. Deixano eles cada vez mais rico. Agora, cachaceiro ninguém gosta!”. Biri sabia que tanto ele, a sociedade, a família e os filhos repudiavam o vício do álcool. Ele recordava sempre o dia em que bateu na boca do seu filho, que na ocasião tinha dez anos de idade, quando este lhe roubou um cigarro para fumar às escondidas. “Se meu pai tivesse me quebrado a cara,” falou para o filho naquela circunstância, “hoje eu num taria nem fumando, nem bebendo. Pérdi mim ocê num fuma, num bebe, num usa droga e nem pega ni arma”. Enfatizou.
Sempre contava para os amigos, com o orgulho estufado no peito, que a falha dentária que a boca do filho carregava tinha sido feita por ele. “Ele chegou um dia bêbado lem casa, acho que tinha uns quinze pra dezesseis. Esperei ele vomitá tudo que tinha no estômago. Esperei Valência, mãe dele, dar remédio prêle melhorá. Deixei ela limpá a casa lameada de comida e cachaça que ele tinha soltado pela boca. Aí, assim que vi que ele tava melhor eu falei: ‘Cê nunca mais vai bebê na sua vida! E procê nunca esquecê do que eu tô te falano, toma! Sentei o Kichute na cara dele. Lembra do Kichute? Aquele sapato preto que parece chuteira. É lógico que eu tive coragem, eu prefiro fazê isto no começo de tudo do que vê a pulícia espancando o filho que eles num déro nem um grão de arroz para sustentá. E eles bate sem dó, sem tempo pra explicá porque que o cacete tá comeno no lombo do cabra. Mas rapá, o sangue melou na cara dele. Quebrei o nariz e um dente da frente. Eu sou um bom pai. Procê vê: meu filho, hoje, trabalha na Fiat.” Biri era assim mesmo. Ninguém questionava. Só o fato daquele pai não querer que os filhos passassem pelo que ele passou, já fazia os vizinhos comungarem com ele, acreditando que esta era a melhor forma de evitar o pior para os filhos. “É só você adiantar a desgraça na vida dos filho que eles vão sabê resolvê a próxima cilada que aparecê pra eles. Cê vê: o Juninho, meu filho, perdeu o dente da boca prá aprendê. Sempre que ele colocá algum cigarro, alguma cachaça, alguma porcaria na boca, vai pensá duas vez antes.”. Biri acreditava, que se tivesse podido receber uma atenção melhor dos pais, se o tivessem lhe dado conselhos, se lhe tivessem  esclarecido sobre a vida, se o tivessem matriculado na escola, hoje teria uma profissão mais digna e não o cargo ininterrupto de desempregado. Estaria consumindo wisk ao invés de carregar consigo o luxo da cachaça. Estaria com o estômago ocupado por uma comida digna, ao invés de tê-lo permanentemente ocupado com o vácuo. A boa educação paterna e materna, talvez, lhe ajudasse a demonstrar de outra forma o amor que sente pelos filhos e pela esposa.


Na festa de fim de ano, o fato de estar tonto de ciúmes fazia com que Biri não aguentasse mais ver Valência e seus amigos rirem, se divertirem e fazerem piadinhas sem que ele os autorizassem a isto. “Se fossem apenas seus amigos, tudo bem, mas sua  esposa rir de você também? É algo inadimissivel!” – sussurrava-lhe o ciúme.
– E ela está dando corda, veja! – Acrescentava
– O que será que ela está pensando? Que ela será a própria ceia que vai ser comida no natal? - intrigava-lhe o álcool.
Decididamente estes dois elementos juntos, álcool e ciúmes, causam acidentes irreversíveis. Na realidade o consumo exagerado do álcool, parece não ser bom companheiro de ninguém. Se estivesse sóbrio, com certeza Biri discordaria do o que o álcool e o ciúme determinavam. Estaria se divertindo com os amigos e com a esposa. Perceberia que além dela, outras mulheres, esposas, mães e filhas estavam presentes naquele bar. Perceberia que ela não era nenhum modelo de beleza e por isto, para Biri, sua esposa não tinha nenhum atrativo que motivasse um homem a flertá-la, apenas ele. Além da espontaneidade e da singeleza com que cativava as pessoas que motivos tinha para se enciumar? Talvez o fato de querer ser brincalhão como a mulher e não conseguisse o deixasse desnorteado, então não era ciúmes: era inveja também.
– Ela quer ser melhor que você, Biri – atormentavam seus atuais companheiros invisíveis.    
– Lugar de muié é dendi de casa... – pensou Biri – ... não no buteco rinchando.
Biri estava tão confiante quanto aos conselhos que estavam sendo murmurados ao pé do ouvido que esqueceu-se por completo que fora ele quem a tinha chamado para o bar e colocado-a no centro das atenções.
– Não começa a me encher, Biri – dizia Valência quando o marido a puxava pelo braço. Foi ocê que me convidou para vim, agora que tô aqui me divertindo e num arredo o pé, um centímetro sequer.
– Te chamei pra vim aqui só por educação. – disse o marido.
– Desde quando ocê é educado, homi? – provocou a esposa.
  Muié num tem que aceitá convite de ficá no buteco não. Muié também num tem que ficá rino alto como se fosse homi.
– Num to rino na sua casa – revidou Valência.
– Quem manda na casa é o homi. A muié faz parte da casa. Num discute e vai buscá a carne que ocê fritô e a cumida que ocê fez, vai! – ordenou Biri findando a discussão e mostrando aos homens presentes que a mulher era dele.
Os amigos, juntamente com suas esposas disseram que ele não precisava fazer aquilo com Valência, que estavam todos se divertido, que tinha carne e comida de sobra na festa.
– Olha a fumaça da churrasqueira Biri! Enquanto tivé subino o cheiro de carne é por que num vai faltá bicho pra nós comê, rapá.
 Biri desconsiderou a observação do amigo. Queria que a mulher ficasse longe daquele lugar para poder pensar melhor.
– Vai buscá a comida, anda!
Valência nem discutiu. Atravessou a rua, chegou em casa e olhou para as panelas que, por causa da insistência de Biri, foram todas desligadas, sem que a comida estivesse pronta. O arroz não secou nem a primeira água. Os legumes estavam duros enquanto flutuavam na água da caçarola. A carne, dentro da frigideira, ficou encharcada de gordura. O feijão, mesmo sem Valência abrir a panela de pressão, já sabia que não completara o fim do cozimento. Sozinha ela pensa: “Mulher quando num qué uma coisa, até cede pra agradá o marido. Mas quando ela qué...”, pensou alto, “... vira o diabo!”.
No silêncio da decisão confusa que transitava em sua cabeça, Valência inicia o preparo da comida que estava no fogão, para levar ao seu querido marido: O arroz praticamente tilintou quando caiu no prato. O feijão que flutuava em uma água transparente, foi jogado sobre o arroz para complementar a refeição que tão afetuosamente estava sendo preparada. Valência encontrou um pouco de trabalho para picar a batata, a cenoura e os outros legumes que ainda estavam duros e que, futuramente, comporiam uma maionese. Descascou o ovo que também não teve tempo para ficar durinho. Percebeu a gema estourando sobre toda comida. “Ah, faltou a carne. Ele gosta daquela aguinha temperada que fica na frigideira.”, lembrou. Pegou um pouco da lama do terreiro, jogou sobre a carne e a dispôs sobre a comida.. “Mas eu não acredito que ele vai me maltratá na frente do pessoal, inda mais hoje que é natal.”, pensou Valência quando ia atravessando a rua para alimentar o marido. “Já sofri todo tipo de humilhação com este homi, mas ele nunca fez isto na frente de ninguém”. Lembrou-se de cada olho roxo, de cada briga que já tiveram e no fim, aquela parecia a única ferida. “Mas nóis brigava só dêndi casa e num era em tempo de festa. Num é possível que ele vai fazê alguma coisa comigo.”


– Desculpe interromper a senhora de novo. – disse Nestor - Mas não dá para ir direto ao ponto em que a senhora bateu em Biri?
 – O senhor qué papel higiênico ou jornal hein? – perguntou dona Orquídea ao suposto intruso.
 – Não quero nem um nem outro. Por que a senhora está me perguntando isto? – estranhou o senhor.
– É que o senhor tá com tanta pressa para a Valência acabar o caso, que parece que tá apertado pra í no banheiro. – Todos riram do comentário de dona Orquídea, inclusive Nestor que já percebera que ela que não conseguia segurar sua língua. Dona Zínia se ruborizou com o comentário maldoso da irmã. Mesmo com tantos anos juntas, ainda não se acostumara com estes comportamentos.
Levando aquele comentário na esportiva, Nestor responde:
– Não minha gata! É que daqui a pouco as portas do teatro se abrem e não teremos tempo para continuar a ouvir o desenrolar da história de Valência, entendeu? Como não quero ficar com a curiosidade me atazanando o resto da vida, queria só saber como termina este caso. – virou-se para dona Valência e perguntou – afinal, a senhora bateu ou não nele?
– Eu juro que não bati nele, moço. Eu juro! – cruzou os dedos indicadores na frente dos lábios e beijou duas vezes. – O que aconteceu foi o seguinte: Desde piquena eu já conversava fazeno gésto com os braço. Sabe, primeiro ele atazanô minha cabeça falano que tinha um cara olhano pra mim. Respirei e mudei de lugá, sentei numa ôtra cadêra prá ficá de costa pru rapaz e prá num dá motivo de confusão. Depois ele me fez í lém casa prá buscá da minha comida, que nem tava pronta, prá ele comê. Fui. Confesso que bebi umas cervejinha também, mas ele exagerô, misturô de um tudo. Sabe calcinha de nailon? Aquela bebida que o povo bate leite condensado com vinho? Então.
 Valência nem esperava a resposta das pessoas. Lançava a pergunta no ar e deixava a resposta paralisada no vazio – Ele bebeu cerveja, com calcinha de nailon, com vinho, com cachaça, num comeu quase nada e começou a fazer gracinha com a minha cara na frente de todo mundo. E pior é que era natal. Vê se pode!
– E a senhora?


– Ô preto, eu num ti batí não. Foi a moça que passou aqui e encostou ni mim. Cê sabe que eu falo mexendo com as mão. A moça passô, encostô no meu braço sem querer. Aí minha mão encostô na sua cara sem querê, meu bem. Cê acha que eu ia batê nocê? – Tentava convencer o marido da sua inocência. Ele não a ouviria pois, havia ultrapassado todos os limites que o estado etílico permitia a alguém. Já havia ultrapassado todos os limites e cegueira que o ciúme provocava. “Quebra a cara dela, Biri” – sussurraram no ouvido do bêbado.
– Eu vô quebrar ocê todinha. Aqui e agora! – O ciúme ajudou Biri a se levantar. O álcool se cuidou de lançar Biri agressivamente para cima da mulher.


– Imagina, o senhor, se eu ia aceitar uma humilhação deste tamanho? – Valência percebeu que o ouvinte estava atento a cada palavra que contava. Olhou em volta e viu que a narrativa da sua história era o centro das atenções. “Deve que é bom mesmo o meu causo” e voltou a metralhar os ouvidos presentes com seus projéteis em formato de palavras. - Nem meu pai nunca encostou a mão na minha cara. Daquele homem eu já tinha aceitado de um tudo. Ele me humilhava, me maltratava, ofendia meus filho. Naquela hora que eu ví ele ali bêbado, vuano em cima de mim. Lembrei de tudo que ele me fez e que eu já tinha perdoado. Parecia que uma novela tava passano na minha cabeça. Aceitei tudo que ele já me fez, mas, apanhá na frente dos amigo e no natal, eu num ia aceitá não. Olha, eu acho que lugá de briga de casal é dêndi casa. Mas, se começô a fazê barraco na rua tem que guentá até o fim. Inclusive ter na pele dele a humilhação que quiria me fazê. Eu sempre amei aquele merda, sabia. Não sei o que ele me fez, acho que foi feitiço. – riu da própria brincadeira – nera feitiço não, era amor mesmo. Ele me tratava como uma deusa. A deusa preta dele. Todo mundo gosta de carinho, fala a verdade? Ele me dava flor, me levava pro forró, mas eu tinha que ficá sempre do lado dele...
– Ai Meu Deus, a senhora bateu ou não no seu marido, dona Valência? – interrompeu, desta vez, dona Arlinda que naquele momento havia deixado o mal humor e a tensão de lado para se atentar na história que estava sendo contada.
– Ê, dona Arlinda, a senhora gosta de um fuxico hein? – brincou Valência ao ver que quase todos estavam praticamente hipnotizados com a sua narrativa.
– Todo mundo gosta de uma fofoquinha, principalmente quando a desgraça é alheia. – completou Margarida rindo alto e em bom som.
– Se num quer contá a história era só num tê começado. Ninguém te pediu pra falar nada. Ocê já falô tudo na televisão mesmo! – revidou rancorosa a amiga que foi provocada.
– Ai gente, se vocês ficarem neste bate boca a gente nunca vai saber como foi que Valência bateu no marido. Como foi, afinal de contas que a senhora bateu nele, mulher? – insistiu o senhor Nestor, mais com o intuito de ouvir o fim da história que de evitar o conflito.


– O que Valência tá fazendo ali comendo churrasco junto com o pessoal? – perguntou o ciúmes a Biri.
– Você está vendo como ela está gesticulando muito, como tá descontraída, como está à vontade? – intrigou o álcool.
– Ela tá rindo das piadas dos seus amigos, reparou que na sinuca, ela está torcendo para a dupla que está perdendo? - completou o raciocinio.
 – Até para torcer ela tem que contrariá as ordem das coisa. A gente torce é pra quem ganha. – pensou Biri.
– Está fazendo isto só pra te provocar.
O álcool no cérebro de Biri se incumbia de trazer à tona os momentos que o ciúme lhe ocupou a razão. Até dos momentos que em já havia reconhecido seus erros, ressurgiram com a força do momento presente.
– Mulher só valoriza o homem quando seu macho a toreia. É igual gado, você é macho ou não é? - provocou a cachaça em seu cérebro.
– Vô lá puxá o cabresto desta vaca, então. – levantou decidido Bira.
Assim que chegou perto da fêmea ordenou:
– Vai buscá comida lá em casa para mim, muié.
Ao ouvirem o tom da ordem, vários convidados foram tentar convencer Biri de que aquilo era  desnecessário.
– Prá quê Biri? Carne e comida é o que não falta aqui.
– É. Ocê mermo ajudô na vaquinha pra comprá tudo. Agora vem pôno marra na Valência prá buscá comida?
– Cê tá bebado pra caraio, hein? – brincou um terceiro amigo, também embriagado.
– Era melhó ocês num intrumetê nos assunto de marido e muié! – gritou Biri sem ao menos ter identificado as vozes que lhe dirigiram a palavra.
– Mas Biri, - falou outro amigo - pára e pensa homi: Lembra que ocê fez ela desligá as panela que tava no fogo? Lembra que ocê num deixô ela nem terminá de fazê a comida para vim pra qui? Num tem comida pronta na sua casa não, homi.
– Cê tá sabeno dimais das coisa da minha casa, rapá.
Nervosos, o ciúme e Bira são impulsionados pelo álcool a irem em direção ao amigo. Como Biri mal estava se aguentando em pé, o amigo simplesmente o ignorou.
– Eu vou buscar a sua comida, Biri – respondeu Valência entrando na frente do marido com o intuito de evitar confusão - Natal é dia de Jesus. Se deixar, o diabo toma conta da festa. – E saiu para cumprir a determinação que o marido lhe havia feito.
– Ela falou que eu tô com o diabo? – perguntou Biri depois que a mulher saiu. Tiveram que segurará-lo para que não fosse atrás da mulher. Aproveitando a força da gravidade, Biri apenas obedeceu o chamado da cadeira e caiu sobre ela.
– Parabéns, rapaz – ouviu Biri ao pé do ouvido – É macho mesmo, veja: sua mulher te obedeceu caladinha. Você conseguiu. E ela não está mais perto daquele tanto de homem.
– Não está rindo como se fosse uma mulher sem dono. Você mostrou quem é que manda aqui.
Biri se sentia meio confuso com aquilo tudo. Chorou uma risada triste, riu um choro feliz.


– Nossa-mãe-do-céu, dona Orquídea. – Naquele momento a artista da fila era dona Valência. Como os atores e atrizes ainda não tinham entrado em cena, ela se incumbia de hipnotizar a fila com seu causo. Com o domínio total dos gestos, Valência ilustrava as cena. – Nossa-mãe-do-céu, gente! Ele já tinha me judiado muito, sabe. Mas nunca fez isto na frente de ninguém. E quando eu ví que ele pudia fazê, em público, aquilo que fazia comigo dêndi casa, eu pensei: “Se ele vié pra cima di mim, hoje eu revido”. Peguei um muncádi barro qui tava na porta di casa e pus no prato dele misturei com o arroz que ainda tava cru, cuspi na carne dele; – neste momento Dona Valência já estava acrescentando coisas para apimentar a narração – por causa do tandi ódio que eu sentia por dentro. Ele pudia me batê e me chingá; ele era meu marido e tinha seus direito de homi da casa, né? Mas na frente dos ôtro não, isso eu num ia dexá mermo. Coloquei o arroz cru, pus o feijão por cima, deixei a carne escarrada e com barro incima do arroz e voltei pro buteco. Já dexei atás da porta um trem que eu sabia que podia me servi de valia. Voltei pro buteco com o prato na mão e toda carinhosa. Tava doida prele me chingá. Ele num me fez nada. Cê credita? Num fez nadica de nada. Só ficô me oiano com o olho de pêxe morto. Eu num fazia idéia do que tava passano na cabeça daquele homi.


– Senta ai, muié. Come comigo a nossa ceia de natal que ocê trôxe – ordenou Biri quando viu que Valência havia chegado com o prato nas mãos.
Depois que Valência silenciosamente obedeceu a ordem do marido, Biri resolveu acatar os conselhos dos amigos. Afinal de contas, era natal. “Ela tá te suportando bêbado, cara”, “Olha como ela te ama”, “Ela podia aproveitá que ocê num tá guentano nem ficá de pé e te maltratá na frente de todo mundo, mas não. Ela foi na sua casa, fazê o que ocê pediu”, “Num reclamô, nem nada”, “Ela te ama dimais, cara!”, “Num faz nada com ela não, amigo. Tamo no natal, lembra?”, Biri parou de dar ouvidos ao ciúme, parou de dar razão ao álcool, resolveu ouvir àquelas vozes que pareciam mais sensatas para a ocasião. Prometeu se controlar.


Nunca uma fila havia sido tão divertida. Quase todos prestavam atenção naquela história. Quase todos riam com a narrativa tão bem articulada daquela mulher. Quase todos estavam com o pensamento e a atenção voltados para o que Biri tinha feito com a própria mulher. Quase todos se revoltavam com o machismo do marido de Valência. Quase todos que estavam de corpo presente naquela fila, estavam também com o pensamento e o interesse voltados para aquela história. Havia especificamente uma mulher naquela fila que, desde o momento em que chegou, tinha sua atenção e suas lembranças voltadas para outros destinos.


Tudo começou quando o orgulho tomou conta daquela mãe que assistiria, de perto, o sonho do filho sendo realizado. O orgulho de mãe é sempre muito maior que qualquer história empolgante sendo contada em uma fila.
A memória de dona Glória partia dos acontecimentos atuais que haviam insuflado seu ego materno. Sentia que o seu ego, o seu orgulho, o seu sentimento de mãe realizada eram maiores que qualquer sentimento que os presentes poderiam ter. Provavelmente, bem maior que o salão onde acontecerá a estréia daquele espetáculo! Provavelmente maior que o Morro do Papagaio, com seus prováveis mais trinta mil habitantes.
Sentia que seu orgulho era o maior que o orgulho de qualquer um. Era mãe do idealizador daquele grupo de teatro de favela. Assistiu cada etapa de conquista que aquele menino teve. Presenciou e viveu com ele cada desilusão e dificuldade. Ter assistido o filho dando entrevistas nos canais de tevê, ter ouvido uma das atrizes dando entrevista na rádio Itatiaia no programa do Eduardo Costa - que todos os cantos do morro escutavam. Ter visto a foto do filho nas páginas de cultura dos jornais de Minas era, para aquela mãe, a glória. Constantemente dona Glória olha à sua volta e vê o grande número de pessoas esperando para ver seu filho e seus amigos atuarem. “Além do povo do morro tem um tanto de ‘gente chic’ na fila”. – pensou o orgulho, que ocupava-lhe o coração.
Seu filho definitivamente tirou-lhe o medo que tinha desde que ele nascera: o medo de que  ele fosse preso por estar fazendo coisas erradas, o medo de que fosse drogado ou andasse armado. Tinha medo de ver o filho aparecendo na TV, em programas como o “Aqui Agora”, o “Linha Direta”, o “Programa do Ratinho”, o “Balanço Geral”... O medo de ouvir o filho dando entrevista no rádio para a sua xará, Glória Lopes, que só entrevistava bandidos perigosos. O medo de ver a foto do filho nas páginas policiais dos jornais. Este medo permeia a vida de toda mãe favelada. “Meu filho apareceu na tevê, falô na rádio e teve foto no jornal”- pensava aquela mãe, orgulhosa da educação que, mesmo com tanta dificuldade, conseguira prover ao filho.


– Mãe, tô indo ver o Grupo Galpão lá na praça do Papa, viu? – Disse o filho de Dona Glória saindo apressado após chegar do serviço.
– Ocê é doido de ir, a pé, para a Praça do Papa, meu filho. Ainda mais com esta meninada da Casa Santa Paula. Pede pra coordenação de lá conseguir um ônibus procês. – O filho nem ouviu o que a mãe dizia, só queria ver o Grupo Galpão que se apresentaria às vinte horas. Já eram dezessete e trinta e eles ainda tinham muito chão pela frente.
 De dentro de casa, dona Glória acompanhou o filho subindo o beco apressadamente para chegar à rua e se encontrar com os amigos. “Ainda bem que tem a companhia deles”, pensou a mãe,  assim ele dividiria com os amigos a missão de vigiar os trinta ou trinta e cinco alunos que estão sob sua responsabilidade. Dona Glória torce para que nada lhes aconteçam. Torce para que eles consigam ir e chegar sãos e salvos..
A praça do Papa, na cidade de Belo Horizonte, fica próxima ao Parque das Mangabeiras. Este parque este é situado bem próximo à Serra do Curral, ou seja, ladeiras e mais ladeiras não faltarão no trajeto do jovem, seus amigos e seus alunos.
O Filho de Dona Glória saiu do Beco Jurema, este era o nome do beco em que morava. Tinha este nome porque na hora de batizar os becos do morro dona Glória se recusou a emprestar o seu título para a estreita viela em que morava. “Mas, dona Glória, a senhora é uma pessoa muito conhecida aqui no morro. Qual o problema deste beco ter o seu nome?” – insistia o agente da prefeitura. “Não quero e pronto!”. Uma lata de ervilhas foi parar nos pés do agente da prefeitura, estava sendo usada como bola para o futebol da garotada da praça. Dona Glória olhou aquela lata e disse: “Jurema. Coloque o nome de Beco Jurema”. E assim foi.
A casa de Dona Glória findava o Beco Jurema, fazendo com que ele fosse sem saída. Ao perder o filho das vistas, sabe que ele desaguou na Rua São Tomás de Aquino, rua que tem seu inicio num dos bairros vizinhos à favela - o São Pedro - mas que maior parte da extensão desta rua era dentro do morro. A Rua São Tomás de Aquino é o pólo comercial da favela. No bairro vizinho esta mesma rua é um morro que, quando chove, os carros têm que subir de marcha ré se quiser chegar até as suas respectivas garagens. No morro, os comércios da Rua São Tomas de Aquino tinham o sistema de anotar os fiados nas cadernetas para que o pessoal pudesse comprar e pagar no fim do mês. Este sistema ajudou muitas famílias a não morrerem de fome durante os momentos trágicos e as crises homéricas de desemprego. A família de Dona Glória, inclusive, usufruiu muito deste sistema de anotações.
“Ele vai andá dimais”, pensou aquela mãe, “Vai costurá os beco do morro pra chegá na Avenida Nossa Senhora do Carmo. Depois disso... Ô minha nossa senhora protege meu filho até chegá na Praça do Papa. Num tenho como fazê isso. Ocê sabe como é a preocupação de uma mãe. Protege esses minino, pelamor-de-deus.”
Realmente Dona Glória não faz idéia do trajeto que fariam.


Depois que costuraram a comunidade usando os becos como caminho, chegaram na Avenida Nossa Senhora do Carmo. Esta avenida, ligava, por assim dizer, a cidade de Belo Horizonte à cidade do Rio de Janeiro. Esta avenida começava na Savassi - o bairro que era o pólo comercial ‘chic’ da cidade; passava em frente à favela indo em direção ao BH Shopping - Shopping de “granfino” – e ao atingir o município de Nova Lima, se transformava na BR040. Mas como o trajeto daquela “troupe” não era o Rio de Janeiro e sim a praça do Papa, retomarei a história: Da Avenida Nossa Senhora do Carmo até a praça do Papa, dona Glória já não tinha noção do itinerário que o filho fez. Seu pensamento se revezava entre Deus e o filho. Era preciso pedir a Ele que protegesse a sua cria com aquela ninhada de alunos, sãos e salvos. “Os menino e as menina que fica atrás dele, parece um bando de pintin e de patin que ficam atrás das mãe.” – riu do próprio pensamento. Sentia que já estava mais calma, apesar de sempre achar uma loucura o filho fazer este tipo de programa.
...
 São dezessete horas e trinta minutos: Na praça do Papa, os atores do Grupo Galpão estão fazendo seu aquecimento vocal, o cenário, as luzes e toda parte técnica já está montada. Os atores fazem seus exercícios vocais com vocalizes, trinados, escalas subindo de dó a dó.
...
Pronto! Depois de ouvirem os conselhos e recomendações de alguns pais, estavam preparados. Costuraram os becos do morro e atravessaram a passarela. Desde que o jovem descobriu a existência do Grupo Galpão, este mutirão era feito ao encontro do divertimento e da emoção.
...
 São dezoito horas: Na praça, cada ator de posse do seu microfone sem fio, testa o seu canto e alguma fala, “Equaliza melhor o microfone do Júlio”, pede um dos atores, “Podia melhorar o grave do microfone da Fernanda, não?” – interfere Lydia – “Ih...!” fala Arildo, “ ...a pilha do meu microfone tá fraca, tem outra pra trocar?”. Cada um dos treze atores daquela peça fazem suas observações quanto à parte técnica do espetáculo que podem prejudicar o andamento da sua cena, não sabem eles que...

...O rapaz, seus amigos e seus alunos após terem chegado na Avenida Nossa Senhora do Carmo já atravessaram a passarela que liga os transeuntes da favela ao Bairro Sion. Caminharam toda extensão da Rua Panamá. Entraram na Rua Colômbia à esquerda, viraram a rua à direita - Rua Assunção. “A próxima rua à esquerda é a menor rua de todo o Bairro Sion, a Rua Estados Unidos” – acreditava o rapaz. Depois que passaram por ela, viraram à direita e estão seguindo a rua Chicago em toda a sua extensão. “Aquela avenida ali, é a Uruguai, depois que a gente atravessar ela, já não é mais a Chicago, ela passa a se chamar Rua Rubim”, – explicava o jovem a seus alunos e amigos. “Eu tô doido pra gente chegar na Avenida dos Bandeirantes. Assim que isto acontecer, já é praticamente meio caminho andado” – comentou o rapaz a todos.
...
Dezoito e trinta da tarde: Na praça, cada ator se apossa do seu kit de maquiagem cênica, do seu mapa indicando a cor com que deve ser pintado seu rosto e vai para o camarim se maquiar. Cada detalhe, cada risco, cada cor, demanda muita atenção na finalização. Os personagens, num espetáculo, têm facetas e personalidades que precisam ser pontuadas para que a sua uma mensagem possa  ser dita. Além do figurino, dos adereços e do texto, a maquiagem diz muito em cena. Mesmo que o público leigo não entenda as técnicas que foram usadas em cada detalhe daquela peça, percebe a beleza e a delicadeza que o todo traz em seu conjunto. Isto proporciona ao público emoções diversas, que vão do cômico ao dramático.
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No caminho em direção à praça, após andar vários quarteirões chegaram à tão desejada Avenida dos Bandeirantes. O jovem pensa: “A praça da Bandeira é agora a nossa próxima meta!”.
A turma se divertia com aquele desbravamento em uma terra que, para muitos, era desconhecida. Mesmo com tanta estrada pela frente eles não perdiam a alegria, e a espontaneidade. Riam, corriam, e brincavam. O fato de aproximadamente trinta e cinco crianças e jovens, em sua maioria de negros, transitarem calmamente pelo bairro causava, em muitos transeuntes, um estranhamento impactante. “O que faz este tanto de pivetes no nosso bairro?” – pensou alguém ao vê-los. Mas, ignoraram por completo os olhares que lhes jogaram. Não que esta atitude tivesse sido calculada, mas por estarem em um estado de espírito tão bom que não captavam energias ruins. Estavam prestes a assistir ao espetáculo Romeu e Julieta e isto prometia ser a melhor coisa para aquela turma. E nada, nem ninguém, seria capaz de impedir isto. Para muitos deles, ver uma peça de teatro era novidade. Para a maioria deles, conhecer o Grupo Galpão era uma honra. Ver Romeu e Julieta, para todos eles, era um acontecimento fantástico.
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 Dezenove horas: O movimento de pessoas na Praça do Papa já começou. Na verdade ela se chama Praça Governador Israel Pinheiro.
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Dalí há uma hora os jovens caminhantes ocuparão  o único lugar onde encontrarão para ver a peça: na parte mais alta da praça, próximo à cruz onde foi instalado o altar, por ocasião da visita do Papa João Paulo Segundo.

Foi naquele mesmo ponto que, no dia primeiro de julho de mil novecentos e oitenta, numa terça-feira o Papa rezou sua missa na cidade de belos horizontes. Poucos ali presentes e nenhum daqueles jovens a caminho da praça sabem deste fato histórico. Grande parte dos belo-horizontinos ignoram ou desconhecem as frases proferidas pelo Sumo Pontífice a respeito da Cidade: "Vocês podem olhar as montanhas atrás e dizer: 'que belo horizonte'. Vocês podem olhar a cidade à frente e dizer: 'que belo horizonte'. Mas, sobretudo, quando se olhar para vocês, se deve dizer: 'Que Belo Horizonte!'".
...
Subindo a íngreme Avenida Agulhas Negras, os jovens sequer se reconhecem naquelas mansões. “Nem como filho de empregado eu vou entrar numa casa dessa” – disse um dos amigos do jovem. Decididamente, aqueles casarões não lembram, em nada, os barracos em que moram. “Nossa! Numa casa desta eu e os meus dez irmão tinha um quarto pra cada um. Ainda sobrava espaço pra vó, pra tia e pra toda a minha família”. “Se eu tivesse uma casa desta eu só ia ficá brincano no jardim”. “Eu não, ia é trazê minha família que tá passano fome lá no interiô e fazê nestas área em volta dela,  uma casa pra cada um morá”. “Eu ia era dormi o dia todo naquela rede”. Viajando longe, com a imaginação e nos planos que fariam caso tivessem aquelas casas, nenhuma das crianças e nenhum dos jovens perceberam que uma viatura policial passara por eles pela quinta vez e repetiria esta ação por mais três vezes e seria despercebida novamente. “Se tivesse uma piscina daquela na minha casa, o meu irmão ia podê treiná natação e num teria morrido afogado”.
...
Dezenove horas e trinta minutos: Os atores dão as últimas conferidas no seu material de cena.
...
Dezenove horas e trinta minutos: os jovens já escutam o barulho do público e as músicas de domínio popular que dão o clima para o inicio do espetáculo. Ainda faltam aproximadamente quatrocentos metros do ponto onde os jovens estão para o ponto onde têm que chegar.
...
“Flor minha flor! Flor, vem cá!”. Os atores se reúnem nos bastidores, fazem uma roda e gritam juntos “Iiiiiih Merda!”
...
“Flor minha for! Flor, vem cá!”. Os jovens escutam a música e imaginam já haver começado a peça. “Vamos correr, pessoal!”. A praça está tão cheia, que ninguém percebeu um grupo de aproximadamente trinta e cinco jovens e crianças correndo para conseguir um lugar para assistir ao teatro.
...
“Gente, vem cá!” – Chico Pelúcio chamou seus colegas do elenco –“Estão vendo aquele tanto de criança e jovens correndo para conseguir um lugar na platéia? Vamos fazer o espetáculo para eles hoje”.“ Daremos o nosso melhor.” – Completou uma das atrizes

...
“Finalmente” – pensou o jovem assim que chegou no alto da praça– “ aqui tá meio longe mas é melhor do que nada!”.
...
“Alexandre” – Gilma, a produtora do Grupo Galpão chamou o técnico de som pelo rádio – “Pode colocar o Spot inicial.”
...
Assim que o jovem, seus amigos e seus alunos e alunas assentaram, o spot  começou a tocar: “O Grupo Galpão apresenta o espetáculo Romeu e Julieta. Contamos com o patrocínio de...”. “Estavam só esperando a gente chegar” –  brincou o jovem.
...
O espetáculo começou!
O público ali presente não se atentava para o brilho nos olhos daqueles trinta e cinco jovens e crianças. Ninguém percebeu o quanto a magia daquela peça ampliou a visão de mundo deles. Nem o jovem educador ficou livre do sequestro a magia e a fantasia da peça. “Acho que nunca vai tê um trem bom deste lá no morro” – pensava o jovem.


E lá na fila, na espera de ver o espetáculo do filho, Dona Glória, se realiza na realização dele. “Ele conseguiu trazer esse trem bom para o morro” – pensou emocionada.


Assistindo ao espetáculo Romeu e Julieta, o jovem e seus “discípulos” riam como se rir fosse um luxo para poucos. Sentiram medo ao verem o ator cambaleando sobre a perna de pau. Era um medo diferente de quando viram um rapaz cambalear com uma bala alojada no corpo. Era um medo diferente de quando os policiais lhes páram, lhes jogam na parede, lhes revistam de cima abaixo, lhes chutam os pés e lhes dão cascudos. “É um medo que não parece medo!” – cochicou um deles.
Se emocionaram com o destino de Julieta e Romeu. Inevitavelmente, aquela obra teatral remeteu à memória de cada jovem as tantas mortes presenciadas por eles. “Aquela morte era por amor!”, “Eu achava que as pessoas só morriam quando eram matadas ou, então, quando tinham doenças sérias” – divagavam. Aplaudiram de pé. Para qualquer um ali presente, aqueles aplausos poderiam ser indiferentes, mas para eles não: se pudessem fariam dos seus aplausos o único som que os atores do Grupo Galpão ouviriam. “Eu quero um autógrafo deles”- falou uma das alunas. “Não! A gente tem que ir embora. Chegar muito tarde no morro é perigoso!”. “Ah, por favor!” – insistiu a garota. “Então tá, mas tem que ser rápido”. O jovem aproveitou que os alunos e os amigos foram atrás dos autógrafos e foi, mesmo sem graça, cumprimentar cada ator e cada atriz pelo lindo trabalho realizado. Felizes com aquelas assinatura nos pedaços de papel, aquela pequena platéia sentira que já havia realizado aquilo que fora fazer. Nada tiraria deles a felicidade que um período de uma hora e meia lhes proporcionara.
Retornarão todos aqueles cinco quilômetros e meio com todo o prazer do mundo...
E como das outras vezes, o jovem chegará às duas da manhã em casa e sem deixar a mãe dormir, contará toda a aventura para dona Glória. Ela ouvirá atentamente, mas sem conter a constatação de que tinha um filho maluco e corajoso.


– Corre, dona Valência, conta logo se a senhora bateu no marido ou não. Daqui a pouco a gente tem que entrar no teatro e a senhora não chega no ponto principal – reclamou Nestor.
Só depois que a pergunta foi feita à dona Valência foi que Dona Glória percebeu ter dado uma desligada daquele lugar. Pensou em toda a trajetória que o filho narrava ao chegar tarde em casa. Quando ele fazia aqueles passeios doidos, ele sempre chegava quase duas horas da manhã, pois, além de pegar cada filho para ver o espetáculo, também tinha que entregar cada um aos seus respectivos responsáveis, em suas respectivas casas. Às vezes, antes de continuar a entrega de filhos, tinham que ficar um tempo maior em uma das casas para se protegerem dos tiros que começavam sem aviso prévio. Só quando cessavam os estrondos, ele voltava a caminhar pelo morro e terminar sua labuta de conduzir as crianças para seus lares.


Hoje, junto com ela, à espera da estréia da peça, estavam as mulheres entrevistadas, moradores do morro e também os atores do Grupo Galpão. Eles conseguiram! “Bendita a Voz entre as mulheres”, a peça que estreará naquela noite de oito de março de dois mil e três foi dirigida por um daqueles atores. Aquele fato a fez se arrepender dos pensamentos que já direcionara ao Grupo Galpão, “Tenho certeza que os ator desse tal “Galpão” já deve está em casa dormindo. Enquanto meu filho, nem sei se vai chegá em casa vivo e a culpa vai sê deles”.

– Ai, ocês só qué sabê se eu bati nele ou não? Eu quero contá a história toda, com detalhe, né...?
– A peça daqui a pouco vai começá – insistiu dona Zínia.
– Então tá. Eu falei que num batí, ele falô que eu bati. Eu temei e fui fazê um carinho no rosto dele... “Ô meu preto, eu nunca ia batê nocê, e ocê sabe disso”. Minina, parecia que o home tava com o diabo no corpo. Ele saltô pra cima di mim igual uma cobra caninana e falô: “Ocê me bateu sim, eles me contáro tudo. Eu vô te quebrá a cara, mulhé!” Como ele já tava prá lá de Bagdá, foi fácil eu segurá ele e perguntá “– quem falô procê que eu ti bati? Ocê tá muito bêbado, bem. Vamo pra casa.” Cê credita que eu até pensei em fazê um chá pra ele bebê? Dá um banho nele? Colocá ele pra dormi? Mas aí ele foi me chingano de tudo quanto é nome, me humilhano na frente de todo mundo, que eu decidi: “Ah é?”, dei um grito tão forte que todo mundo ficô quéto “– Ocê falô que eu te bati, então agora eu bato” e lasquei um tapa na cara dele.
Todo mundo fez “ohhh”!
- Foi engraçado – continuou ela - ele cambaleô e tentou me batê, sentei ôtro tapa na cara do homi, só que desta vez foi do ôtro lado; pro rosto dele num ficá com ardume de um lado só.
– Então a senhora bateu mesmo nele?
– Calma moço! O pió inda tava por vim...
– Tem mais?
– Uai, cê acha que não? Muié, quando pricisa, vira leoa. Me deixa continuá... Depois que ele levô aqueles tapão – cê sabe, né: homi num gosta de apanhá de ninguém, imagine de mulhé! –, ele falô que ia me matá, que eu ia pro inferno naquela noite e tudo mais. Me lembrei daquele trem que eu tinha dexado atrás da porta e corri pra casa. Era só atravessá a rua mesmo! Passei a mão no rodo, que eu tinha dexado trás da porta, e chamei ele “Vem! Ocê num é homi! Pisa aqui dentro que eu quero vê.”
– Bom, gente! – interrompeu Josy, a produtora do espetáculo – eu sei que a conversa está empolgante, que está divertida mas... está na hora de entrarmos.
Se tivessem ensaiado, o coro de ahhhhh não teria sido tão sincronizado. 
– Vamos entrar, gente! – reforçou a produtora.
– Aí, tá vendo, eu sabia que isto ia acontecer! – reclamou o Nestor como se fosse uma criança que havia perdido o doce.
– Não reclama gente. Depois eu termino de contá. – falou dona Valência com a sensação de bem estar. Todos queriam saber sobre ela.


“Vou pedir para o público entrar” – comunicou a Josy aos atores. Esta frase deixou a protagonista do espetáculo tensa. Ela chora em silêncio. A reação dela faz com que todos fiquem ansiosos e com um frio na barriga, afinal, é a protagonista que conduz o espetáculo. O medo de que errem alguma cena era latente: “e se não gostarem do espetáculo? E se as mulheres não se reconhecerem nele? E se os artistas ali presentes acharem amador demais?” Mesmo com tantas duvidas no ar, cada integrante do grupo ali na coxia sentia-se realizado. Recordaram o quanto o processo foi construtivo.


O público adentrou o espaço onde seria apresentada a peça e foi ocupando os lugares na arquibancada.


O idealizador daquele grupo pensou no quanto a sua mãe, dona Gloria, deveria estar realizada com mais esta conquista do filho. Sabe que ela sempre teve medo de que se envolvesse com as coisas ruins da vida.


Cada detalhe do cenário era observado pelas mulheres e pelos convidados.


Dona Glória chora internamente. Aquilo é uma conquista dela. Não sabe dona Glória que, no próximo dia dezesseis de maio deste mesmo ano, será o dia do seu falecimento. Não sabe também que o teatro do filho terá grande responsabilidade nisto.


“Que bonito!” – Afirmou dona Acácia, ao ver o cenário.
O cenário é feito de madeiras de cor ferrugem instaladas próximas umas as outras formando o espaço cênico, estabelecendo as coxias, além de ser o cenário do espetáculo.


 “Anda Marcela, estamos atrasadas!” – gritará dona Glória para a garota que irá com ela até o Centro Cultural da UFMG para ver, pela terceira vez, o espetáculo “Bendita a Voz Entre as Mulheres”. “Calma dona Glória, ainda falta uma hora e meia para a peça começá!” – responderá a garota. “Prefiro chegar adiantada e esperá uma hora pra entrá, do que chegá atrasada e não tê lugá prá sentá.” – replicará.


A peça nem havia começado e já fez várias mulheres se recordarem de quando suas casas eram de madeira.


“A senhora tá ansiosa hein?” brincará Juliana, a outra acompanhante de dona Glória até o teatro. “Hoje meu filho vai falá depois da apresentação” – sentirá, de novo, o orgulho materno tomando conta das pernas que acelerarão seus passos.


Hoje, oito de março de dois mil e três, já não existem casas de tábuas e nem de zinco no Morro do papagaio. As lembranças dos momentos em que viveram neles, fazem com que as mulheres da platéia desenterrem a nostalgia e o passado.


 A ansiedade tomará conta de todo o racional desta mãe, se esquecerá que a angina acompanha seu centro motor da circulação do corpo, o coração. Se esquecerá do problema de pressão e iniciará uma corrida desnecessária para que não se atrasasse para a apresentação, deixando para trás as duas jovens que lhe acompanhavam.


– Para quem escuta a gente contando tudo que nós já viveu, acha que nossa vida é poesia. Parece até que a miséria é poesia! – sussurrou dona Palma ouvindo as músicas antigas que davam o clima do espetáculo para o público.
– Eh! –  respondeu dona Selma – mas vai vivê a poesia procê vê...


Dona Glória precisará de uma cadeira de um bar na Rua da Bahia para se assentar, pois sentirá tonteira. As moças desesperadas chamarão um policial que dará a mão à Dona Glória e ouvirá dela uma súplica...


Cada uma das mulheres, ao ver o cenário, tinha uma sensação diferente. Esta sensação produzia uma recordação individual, por isto, ao buscarem os seus lugares na platéia, as histórias pessoais estavam sendo contadas num mesmo momento. Não havia ouvinte entre elas, apenas tagarelas.


 “Por favor, seu policial, não me deixe morrer.” – falará dona Glória já sentindo a presença que seu capitulo findará ali.


As luzes se apagaram.


O filho de dona Glória reza um pai nosso e uma ave maria. Fica feliz com a presença da mãe na sua estréia.


As falas incessantes da platéia se findaram.


Não sabe o jovem que no dia dezesseis de maio de dois mil e três, depois da sua apresentação,  terá que reconhecer o corpo de cinquenta e seis anos da mãe no hospital João XXIII.


Acendeu uma luz no palco com a escrita “NO AR”.


O espetáculo começou.

            (...)